Ironias do destino
Do Valor
Sérgio Birchal
16/11/2010
O assunto em voga em economia é a questão do câmbio. Foi o tema principal na última reunião do G-20. O ministro da Fazenda do Brasil, Guido Mantega, denunciou a existência de uma guerra cambial, mas a tensão principal é entre os Estados Unidos e a China. Os Estados Unidos acusam a China de manter a sua moeda desvalorizada artificialmente e ameaçam retaliar os produtos chineses no mercado americano. O governo chinês, por sua vez, replica dizendo que seria social e politicamente insustentável promover uma valorização da moeda na velocidade que exigem os Estados Unidos.
Por detrás da polêmica acerca da moeda chinesa está a questão do reequilíbrio das transações internacionais. Com uma moeda desvalorizada, uma mão de obra educada, abundante e barata, a China se transformou na fábrica do mundo, superando os próprios Estados Unidos.
Os ganhos de produtividade decorrentes desses e de outros fatores (como os volumes de produção, por exemplo) tornaram os produtos chineses extremamente competitivos no comércio internacional. Assim, nas últimas duas décadas, a economia chinesa cresceu exponencialmente vendendo em larga escala uma coleção cada vez mais variada e sofisticada de produtos para os americanos.
Empresas americanas, inclusive se apressaram em transferir suas linhas de produção para a China. Esse, talvez, seja o aspecto mais singular do fenômeno chinês quando comparado com outras economias da Ásia como Japão, Coreia do Sul e demais Tigres Asiáticos.
Mas a maior ironia dessa polêmica é que ela, talvez, nem existisse se, no fim da Segunda Guerra Mundial, os americanos houvessem concordado com a proposta do secretário do Tesouro britânico, John Maynard Keynes.
Talvez poucos ainda se lembrem disso, mas, em julho de 1944, 730 delegados de todos os 40 países que compunham as "Nações Aliadas" se reuniram no Mount Washington Hotel, em Bretton Woods, no estado de New Hampshire, Estados Unidos. A reunião tinha por objetivo criar as condições para a reconstrução do sistema econômico internacional e do sistema monetário internacional. O sistema monetário internacional é o sistema que estabelece a relação de valor de troca entre as diferentes moedas.
O antigo sistema baseado no ouro havia se esfacelado após a Primeira Guerra Mundial e o que se sucedeu foi uma guerra cambial e a adoção de sistemas diferentes que não se comunicavam.
Assim, os delegados que participavam da Conferência Financeira e Monetária das Nações Unidas concordaram e assinaram o Tratado de Bretton Woods nas primeiras semanas de julho de 1944. Esse tratado estabelecia as regras, as instituições e os procedimentos para regular o sistema monetário internacional daí em diante. As moedas passaram a ser cotadas em relação ao dólar americano que, por sua vez, guardava uma paridade fixa com o ouro. A paridade fixa em relação ao ouro foi abandonado pelos Estados Unidos em 1971, que mesmo assim manteve a moeda de circulação internacional.
As principais instituições criadas a partir desse tratado foram o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento, mais tarde conhecido como o Banco Mundial. Esse conjunto de regras, instituições e procedimentos se constituíram no que ficou conhecido como sistema Bretton Woods.
Porém, a grande discussão na conferência de Bretton Woods dizia respeito à extensão dos poderes do FMI na emergente economia mundial pós-Segunda Guerra. Apesar da presença de delegações de todas as 44 nações, os debates eram dominados pelas propostas divergentes entre os Estados Unidos e o Reino Unido. A proposta de Harry Dexter White, que era o economista-chefe para a área internacional do Tesouro dos Estados Unidos, favorecia a criação de incentivos para a estabilidade monetária da economia mundial.
Já a proposta de Keynes previa a criação de uma moeda de reserva mundial (que ele sugeriu que se chamasse "bancor") administrada por um banco central com poderes para criar moeda e com a autoridade para tomar medidas mais amplas. Por exemplo, no caso de desequilíbrios nas contas externas, Keynes propunha que tanto os credores quanto os devedores deveriam mudar as suas políticas econômicas. Assim, os países superavitários (ou credores) em suas contas externas (como é o caso da China hoje) deveriam aumentar as suas importações dos países deficitários (ou devedores, como é o caso dos Estados Unidos hoje). Dessa forma, seriam criadas as bases para um comércio internacional equilibrado. Mas os Estados Unidos, como a possível maior economia superavitária no pós-Guerra e como a nova potência econômica e militar mundial, rejeitaram a proposta de Keynes.
As preocupações dos americanos eram outras; e viam os desequilíbrios externos como um problema apenas dos países deficitários (devedores). No final das contas prevaleceu a proposta dos Estados Unidos.
Hoje os Estados Unidos e os países mais desenvolvidos reivindicam as velhas ideias de Keynes. Eles querem que os países emergentes arquem com o problema da apreciação cambial em função de suas posições superavitárias (credoras) no comércio internacional. Talvez, os americanos amarguem não ter concordado com a proposta do Secretário do Tesouro Britânico. Hoje, talvez, polêmicas sobre desequilíbrios comerciais e guerra cambial não fizessem sentido. Ironias do destino.
Sérgio Birchal é PhD em História Econômica pela London School of Economics (LSE)
Sérgio Birchal
16/11/2010
O assunto em voga em economia é a questão do câmbio. Foi o tema principal na última reunião do G-20. O ministro da Fazenda do Brasil, Guido Mantega, denunciou a existência de uma guerra cambial, mas a tensão principal é entre os Estados Unidos e a China. Os Estados Unidos acusam a China de manter a sua moeda desvalorizada artificialmente e ameaçam retaliar os produtos chineses no mercado americano. O governo chinês, por sua vez, replica dizendo que seria social e politicamente insustentável promover uma valorização da moeda na velocidade que exigem os Estados Unidos.
Por detrás da polêmica acerca da moeda chinesa está a questão do reequilíbrio das transações internacionais. Com uma moeda desvalorizada, uma mão de obra educada, abundante e barata, a China se transformou na fábrica do mundo, superando os próprios Estados Unidos.
Os ganhos de produtividade decorrentes desses e de outros fatores (como os volumes de produção, por exemplo) tornaram os produtos chineses extremamente competitivos no comércio internacional. Assim, nas últimas duas décadas, a economia chinesa cresceu exponencialmente vendendo em larga escala uma coleção cada vez mais variada e sofisticada de produtos para os americanos.
Empresas americanas, inclusive se apressaram em transferir suas linhas de produção para a China. Esse, talvez, seja o aspecto mais singular do fenômeno chinês quando comparado com outras economias da Ásia como Japão, Coreia do Sul e demais Tigres Asiáticos.
Mas a maior ironia dessa polêmica é que ela, talvez, nem existisse se, no fim da Segunda Guerra Mundial, os americanos houvessem concordado com a proposta do secretário do Tesouro britânico, John Maynard Keynes.
Talvez poucos ainda se lembrem disso, mas, em julho de 1944, 730 delegados de todos os 40 países que compunham as "Nações Aliadas" se reuniram no Mount Washington Hotel, em Bretton Woods, no estado de New Hampshire, Estados Unidos. A reunião tinha por objetivo criar as condições para a reconstrução do sistema econômico internacional e do sistema monetário internacional. O sistema monetário internacional é o sistema que estabelece a relação de valor de troca entre as diferentes moedas.
O antigo sistema baseado no ouro havia se esfacelado após a Primeira Guerra Mundial e o que se sucedeu foi uma guerra cambial e a adoção de sistemas diferentes que não se comunicavam.
Assim, os delegados que participavam da Conferência Financeira e Monetária das Nações Unidas concordaram e assinaram o Tratado de Bretton Woods nas primeiras semanas de julho de 1944. Esse tratado estabelecia as regras, as instituições e os procedimentos para regular o sistema monetário internacional daí em diante. As moedas passaram a ser cotadas em relação ao dólar americano que, por sua vez, guardava uma paridade fixa com o ouro. A paridade fixa em relação ao ouro foi abandonado pelos Estados Unidos em 1971, que mesmo assim manteve a moeda de circulação internacional.
As principais instituições criadas a partir desse tratado foram o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento, mais tarde conhecido como o Banco Mundial. Esse conjunto de regras, instituições e procedimentos se constituíram no que ficou conhecido como sistema Bretton Woods.
Porém, a grande discussão na conferência de Bretton Woods dizia respeito à extensão dos poderes do FMI na emergente economia mundial pós-Segunda Guerra. Apesar da presença de delegações de todas as 44 nações, os debates eram dominados pelas propostas divergentes entre os Estados Unidos e o Reino Unido. A proposta de Harry Dexter White, que era o economista-chefe para a área internacional do Tesouro dos Estados Unidos, favorecia a criação de incentivos para a estabilidade monetária da economia mundial.
Já a proposta de Keynes previa a criação de uma moeda de reserva mundial (que ele sugeriu que se chamasse "bancor") administrada por um banco central com poderes para criar moeda e com a autoridade para tomar medidas mais amplas. Por exemplo, no caso de desequilíbrios nas contas externas, Keynes propunha que tanto os credores quanto os devedores deveriam mudar as suas políticas econômicas. Assim, os países superavitários (ou credores) em suas contas externas (como é o caso da China hoje) deveriam aumentar as suas importações dos países deficitários (ou devedores, como é o caso dos Estados Unidos hoje). Dessa forma, seriam criadas as bases para um comércio internacional equilibrado. Mas os Estados Unidos, como a possível maior economia superavitária no pós-Guerra e como a nova potência econômica e militar mundial, rejeitaram a proposta de Keynes.
As preocupações dos americanos eram outras; e viam os desequilíbrios externos como um problema apenas dos países deficitários (devedores). No final das contas prevaleceu a proposta dos Estados Unidos.
Hoje os Estados Unidos e os países mais desenvolvidos reivindicam as velhas ideias de Keynes. Eles querem que os países emergentes arquem com o problema da apreciação cambial em função de suas posições superavitárias (credoras) no comércio internacional. Talvez, os americanos amarguem não ter concordado com a proposta do Secretário do Tesouro Britânico. Hoje, talvez, polêmicas sobre desequilíbrios comerciais e guerra cambial não fizessem sentido. Ironias do destino.
Sérgio Birchal é PhD em História Econômica pela London School of Economics (LSE)
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